Álbum político do MPB4 em 1972, 'Cicatrizes' expõe feridas ainda abertas no Brasil após 50 anos

Álbum político do MPB4 em 1972, 'Cicatrizes' expõe feridas ainda abertas no Brasil após 50 anos
? MEMÓRIA – De todas as vozes da música do Brasil que se levantaram contra a ditadura instaurada no país em 1964, poucas se fizeram ouvir tão alto como as dos integrantes da formação fundamental do grupo MPB4. Aquiles Reis, Antônio José Waghabi Filho (14 de novembro de 1943 – 8 de agosto de 2012) – o Magro – Milton Lima dos Santos Filho (Miltinho) e Ruy Faria (31 de julho de 1937 – 11 de janeiro de 2018) mandaram recados contundentes através da politizada discografia do grupo fluminense.

Profissionalizado em 1965, mas gerado em 1962 a partir do encontro de Magro e Miltinho em Niterói (RJ) e efetivamente nascido em 1963 no meio estudantil dessa cidade fluminense, com o nome de Quarteto do CPC (nome que o golpe tornou inviável para ser grafado na capa do single com as quatro músicas gravadas pelo grupo no primeiro semestre de 1964), o MPB4 enfrentou a ditadura, com maior ou menor contundência, por meio dos repertórios dos 20 álbuns que lançou entre 1966 e 1984 na fase mais relevante na discografia do grupo.

Dessa fase, o sétimo álbum do MPB4 – Cicatrizes, lançado em 1972 pela gravadora Philips, com capa criada por Aldo Luiz a partir de imagens do fotógrafo conhecido como Gaúcho – é considerado pelo público e pelo próprio grupo o mais importante pelo tom político da maior parte do notável repertório.

Apresentado há 50 anos, quando o Brasil vivia sob o império da censura, amordaçado pelo autoritarismo do governo do então presidente Emílio Garrastazu Médici (1905 – 1985), Cicatrizes expôs feridas que, 50 anos após o lançamento do disco, ainda estão abertas no país, embora já parecessem fechadas.

Com 13 músicas distribuídas em quase 40 minutos, o álbum Cicatrizes teve produção coordenada por Roberto Menescal – então diretor artístico da Philips – com a colaboração do então ainda desconhecido produtor Marco Mazzola.

Beneficiado pela chegada ao Brasil da mesa de oito canais, equipamento que permitiu a Magro maiores ousadias na criação e na captação dos arranjos vocais, Cicatrizes foi disco gravado pelo MPB4 com os toques dos músicos do trio Azymuth – Alex Malheiros no baixo, Ivan Conti (o Mamão) na bateria) e José Roberto Bertrami (1946 – 2012) no piano e órgão hammond – e com o violão de Dino Sete Cordas (1918 – 2006), presente em faixas como Desalento (Maurício Tapajós e Hermínio Bello de Carvalho, 1972), samba nunca regravado por nenhum outro artista nem pelo próprio MPB4.

Além de orquestrar as vozes, especialmente envolventes na introdução quase sacra de Viva Zapátria (1972), canção dos compositores mineiros Sirlan Antônio de Jesus e Murilo Antunes, Magro também criou os arranjos instrumentais.

Apresentada por Sirlan no sétimo e último Festival Internacional da Canção (FIC), naquele ano de 1972, Viva Zapátria é canção de resistência que defendia a liberdade e que, musical e poeticamente, dialogava com San Vicente (Milton Nascimento e Fernando Brant, 1972), outra grande música que encorpou o repertório engajado do álbum Cicatrizes ao mesmo tempo em que foi gravada por Milton no álbum duplo Clube da Esquina (1972).

A beleza emotiva que pauta San Vicente e Viva Zapátria – músicas em que o sangue do MPB4 ferveu de amor com sabor de vidro e corte – já ficara evidenciada na segunda faixa do lado A do LP, O navegante, canção de Sidney Miller (1945 – 1980), compositor carioca recorrente na fase inicial da discografia do MPB4.

Seguindo o caminho das águas poéticas, O navegante embarcou nas cordas orquestradas por Luiz Claudio Ramos, violonista que também arranjou o samba-título Cicatrizes (Miltinho e Paulo César Pinheiro, 1972) e que se tornaria nome indissociável da discografia de Chico Buarque. Da mesma forma que já eram indissociáveis em 1972 as trajetórias artísticas de Chico com o próprio MPB4 por conta de gravações e shows feitos nos anos 1960 e 1970.

No álbum Cicatrizes, Chico está presente com Partido alto (1972), samba composto para a trilha sonora do filme Quando o Carnaval chegar (1972) e gravado originalmente pelo MPB4 para o disco com a música do longa-metragem de Cacá Diegues em registro fonográfico rebobinado no álbum Cicatrizes.

Outra faixa incorporada ao disco sem ter sido feita para ele é a gravação mais melódica do samba-enredo Ilu Ayê – Terra da vida (Cabana e Norival Reis), obra-prima do gênero, apresentada pela Portela no Carnaval de 1972 e abordada pelo MPB4 em antologia lançada pela Philips naquele ano com gravações inéditas de famosos sambas-enredo nas vozes dos artistas da gravadora.

O álbum Cicatrizes é aberto com Agiborê (1972), tema afro-brasileiro de autoria de Antonio Carlos dos Santos Pereira e Expedito Machado de Carvalho, os cantores, compositores e violonistas baianos conhecidos como Tom & Dito, dupla formada na Bahia naquele início dos anos 1970. Os violões de Tom & Dito dão o molho da gravação da composição, de autoria questionada por Magro ao discorrer sobre a faixa no livro póstumo Vozes do Magro (2014).

Samba então inédito de Jorge Ben Jor que somente seria gravado pelo compositor seis anos depois no álbum A Banda do Zé Pretinho (1978), Bom dia boa tarde boa noite amor abria o lado B do LP em gravação feita com o toque do trio Azymuth.

O MPB caiu bem no suingue do samba de Jorge Ben, mas foi com temas mais densos e políticos, como Pesadelo (1972), que o álbum Cicatrizes passou para a história como um dos mais fortes libelos de resistência da MPB nos anos 1970.

Assim como Faz tempo (1972), samba que fecha Cicatrizes, Pesadelo é samba dos dois compositores mais presentes no repertório do álbum, Maurício Tapajós (1943 – 1995) e Paulo César Pinheiro, tendo se tornado emblemático pela letra que peita o autoritarismo com rimas como “Você corta um verso, eu escrevo outro / Você me prende vivo, eu escapo morto / De repente, olha eu de novo / Perturbando a paz, exigindo o troco”.

Pinheiro também é o parceiro letrista de Baden Powell (1937 – 2000) na criação do samba Última forma (1972), cantado pelo MPB4, em melancólicos tons menores, com erro na letra, apontado por Magro no já citado livro de 2014 (o verso original “Hoje ou amanhã / Um vai ser curvar” foi gravado como “Hoje ou amanhã / Não vai se curvar”).

Novidade do cancioneiro de Dorival Caymmi (1914 – 2008), Canto de Nanã (1972) tem efeito de mantra no registro do MPB4 neste álbum irretocável que resiste bem ao tempo, após 50 anos, inclusive porque as feridas do Brasil, que já pareciam cicatrizadas, infelizmente estão reabertas.

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