Álbum (con)sagrado do grupo Racionais MC's tem impacto social dimensionado em preciso título da série 'O livro do disco'
Capa de 'O livro do disco – Racionais MC's –Sobrevivendo no inferno'DivulgaçãoResenha de livro da série O livro do discoTítulo: Racionais MC's – Sobrevivendo no infernoAutor: Arthur Dantas RochaEdição: CobogóCotação: * * * * *? Há alguns discos na história fonográfica mundial que impactaram o público-alvo com tamanha força que, através da música, conseguiram impulsionar reflexões e eventuais transformações sociais pelo poder do verbo musicado. No Brasil, um desses raros discos é Sobrevivendo no inferno, segundo álbum do grupo paulistano de rap Racionais MC's, mas o quarto título de discografia iniciada pela banda na década de 1990 com dois EPs, Holocausto urbano (1990) e Escolha o seu caminho (1992). Lançado em 20 de dezembro de 1997, o (con)sagrado álbum gera um dos títulos mais precisos da série O livro do disco, publicada desde 2014 pela editora Cobogó. Pedagogo formado em Letras, Arthur Dantas Rocha – punk rocker criado no ABC paulista (antes de se radicar em Pouso Alegre, cidade de Minas Gerais) e devotado à cultura do hip hop – disseca Sobrevivendo no inferno ao longo de 176 páginas.Além de destrinchar cada uma das 12 faixas do álbum com a devida contextualização de cada sample usado e cada referência bíblica feita nas letras repletas de signos religiosos, o autor dimensiona o impacto social provocado pelo álbum nas comunidades periféricas onde vivem as populações pobres do Brasil, maltratadas pelo Estado. Farol na escuridão de 1997, Sobrevivendo no inferno falou diretamente com o povo negro periférico que (sobre)vive às voltas com o racismo cotidiano da sociedade estruturalmente branca, capitalista e patriarcal.Ciente de que o impacto social do álbum transcendeu a própria música, Arthur Dantas Rocha deixa a análise da cada faixa para a segunda metade do livro, lançado em julho. Antes, na introdução do livro, o autor se coloca na primeira pessoa para relatar como descobriu o grupo de rap – a partir do primeiro álbum do quarteto, Raio-X do Brasil (1993), ouvido por Dantas em 1994 – para então esmiuçar o disco que tornou Edi Rock, Ice Blue, KL Jay e Mano Brown “os quatro negros mais perigosos do Brasil” por tocar fundo nas feridas de sociedade fraturada pela necropolítica brasileira que alveja negros nas ruas e becos escuros onde explode violência muitas vezes silenciada – quando não legitimada – pelas estruturas racistas e classicistas de poder. Capa do álbum 'Sobrevivendo no inferno', do grupo Racionais MC'sReproduçãoNão por acaso, o disco dos Racionais passou a ser caracterizado como manual de sobrevivência para o povo preto e pobre driblar as adversidades do dia-a-dia e contrariar as estatísticas frias. O álbum ratificou, em bom português, que o inferno é aqui, no Brasil, em qualquer lugar onde a polícia mata negros com balas que sempre acham os mesmos alvos. Disco que extrapolou o universo-alvo a que se destina, pela força da mensagem, Sobrevivendo no inferno já gerou ensaio em esfera intelectual – As fratrias órfãs (2019), de Maria Rita Kehl – e virou livro em 2018 com as reproduções das letras que tornaram o quarteto objeto de culto na cena nacional. Contudo, antes da aclamação geral, a recepção do disco e dos próprios Racionais MC's na mídia foi lenta, com resistência de ambos os lados. Dantas Rocha mostra como a mídia demorou a abrir espaços para o grupo e para o próprio rap, surgido no Brasil nos anos 1980 e expandido através da década de 1990 pelos próprios meios, sem contar com a divulgação de grandes jornais e revistas. A legitimidade de Sobrevivendo no inferno foi dada primeiramente pelo próprio público-alvo. Por serem contundentes crônicas sociais calcadas na realidade, as letras do disco geraram autoestima na população preta e periférica, fazendo brotar orgulho negro. Excepcionalmente bem escrito e fundamentado, o título dedicado ao álbum Sobrevivendo no inferno na série O livro do disco presta imenso serviço à bibliografia musical brasileira por dissecar, com a bênção da perspectiva do tempo, álbum digno de figurar em qualquer antologia fonográfica do Brasil e mesmo do mundo, por tudo o que fez refletir e tudo o que gerou na sociedade. E, como dito, são pouquíssimos discos na história que conseguiram tal façanha.