Caetano Veloso faz soar no tempo atual todas as sílabas das palavras cantadas no show 'Meu coco'

Caetano Veloso faz soar no tempo atual todas as sílabas das palavras cantadas no show 'Meu coco'
Choro do artista na canção 'Itapuã' marca a estreia carioca da turnê de espetáculo valorizado pelo inebriante baticum dos percussionistas Kainã do Jêje, Pretinho da Serrinha e Thiago da Serrinha. Caetano Veloso na estreia carioca do show 'Meu coco' com os percussionistas Kainã do Jêje, Pretinho da Serrinha e Thiago da Serrinha

Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

Resenha de show

Título: Meu coco

Artista: Caetano Veloso

Local: Vivo Rio (Rio de Janeiro, RJ)

Data: 8 de junho de 2022

Cotação: * * * * 1/2

? “Minha palavra cantada pode espantar / E a seus ouvidos parecer exótica”, ressaltou Caetano Veloso, no palco da casa Vivo Rio, na introdução a capella de Muito romântico (1977), quinta das 26 músicas do roteiro inteiramente autoral seguido pelo artista na estreia carioca do show Meu coco na noite de ontem, 8 de junho de 2022.

Logo em seguida, Muito romântico – segunda das três músicas fornecidas pelo compositor para Roberto Carlos ao longo da década de 1970 – foi encorpada com o inebriante baticum dos percussionistas Kainã do Jêje, Pretinho da Serrinha e Thiago da Serrinha, se tornando um dos pontos mais altos do show orquestrado sob a direção musical de Lucas Nunes (guitarra e violão) e Pretinho.

Os versos da primeira estrofe dessa canção do Roberto que é de Caetano foram a senha para o entendimento do show Meu coco por quem por acaso ainda desconheça a natureza inquieta da alma musical do artista. À beira dos 80 anos, a serem festejados em 7 de agosto, Caetano Veloso ainda faz no tempo soar as sílabas de palavras cantadas com inventividade que, sim, a alguns ouvidos podem parecer exóticas.

Marcado na estreia carioca pelo choro do artista na canção Itapuã (1991), lembrança nostálgica de alegria e amor juvenis em Bahia feliz, o show Meu coco é baseado no álbum homônimo de outubro de 2021 – o primeiro disco de músicas inéditas do cantor desde Abraçaço (2012) – e, tal como o álbum, segue por caminhos sinuosos, desbravados pelos arranjos geralmente exuberantes tocados por um sexteto dos deuses.

No confronto com roteiro original da estreia nacional do show Meu coco em Belo Horizonte (MG), em 1º de abril, o repertório da temporada carioca na casa Vivo Rio – em cartaz até sábado, 11 de junho – teve a adição da romântica canção Cobre (2021), destaque da safra autoral do álbum Meu coco na seara melódica, em número calcado na voz e no violão do artista.

Fiel à sonoridade do disco, o show chegou ao Rio de Janeiro (RJ), cidade que há décadas abriga o artista baiano, com alguns problemas técnicos – como o fato de a voz do cantor ter soado abafada pelo baticum no samba Meu coco (2021) e em Trilhos urbanos (2021), além de ter ganhado ecos em canções como Menino do Rio (1979), Ciclâmen do Líbano (2021) e sobretudo Mansidão (1982). Driblados por Caetano com elegância, esses entraves técnicos soaram diluídos na corrente de força e beleza musical que arrastou o público por quase duas horas de show.

Caetano Veloso no palco da casa Vivo Rio na estreia carioca do show 'Meu coco' em 8 de junho

Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

À frente de cenário criado por Luiz Henrique Sá a partir de obra inacabada de Helio Eichbauer (1941 – 2018), o cantor se mostrou sem medo de parecer exótico – traço recorrente na trajetória do artista desde que o samba é samba – em movimento realçado pelas coreografias inusitadas de músicas como Não vou deixar (2021).

Mas alternou as dissonâncias do que pede para se cantar – como Anjos tronchos (2021), canção que perdeu em cena o efeito mântrico da gravação do disco ao mesmo tempo em que ganhou solo imponente da guitarra de Lucas Nunes – com a busca do acorde perfeito maior que faz cantor e público brilharem em um cântico uníssono, efeito que embalou Baby (1968), Sampa (1978) e Cajuína (1979).

A pulsação da percussão em Cajuína reiterou que, embora músicos como Alberto Continentino (baixo) e Rodrigo Tavares (teclados, Glockenspiel e MPC) contribuam expressivamente para o impacto da massa sonora do show, a alma de Meu coco reside mesmo no vigor invulgar do baticum de Kainã do Jêje, Pretinho da Serrinha e Thiago da Serrinha, como a luminosa abordagem de Lua de São Jorge (1979) referendou ao fim do show, antes do bis que, além da canção Mansidão, abarcou a dançante Odara (1977) e culminou com Noite de cristal (1988) em corajoso anticlímax.

A combinação de percussão e guitarra no arranjo de Reconvexo (1989), por exemplo, eletriza e renova o estilizado samba de roda, veiculo para os remelexos de Caetano.

Aberto com o registro de voz e violão de Avarandado (1967), canção apresentada na voz de Gal Costa há 55 anos em álbum dividido com Caetano mas nunca gravada pelo autor, o roteiro do show Meu coco é muito feliz ao entrelaçar e harmonizar o repertório do disco homônimo com as músicas de várias fases da obra do artista, todas revigoradas pela inserção no atual universo musical do artista.

Se Enzo Gabriel mixou desalento e esperança ao abençoar a chegada ao mundo de meninos guenzos que podem vir a se tornar gigantes negros no Brasil racista, porque Caetano canta o que não pode mais se calar, O leãozinho (1977) soou como acalanto na sequência imediata de roteiro que, cinco números depois, abriu espaço para Pretinho da Serrinha evoluir com ginga no palco da casa Vivo Rio na cadência de Sem samba não dá (2021).

Número calorosamente ovacionado pelo público, You don't know me (1972) confirmou que o culto ao já cinquentenário álbum Transa (1972) é real, e não mera invenção midiática de jornalistas musicais.

Em contrapartida, as músicas Araçá azul (1973) e A Outra Banda da Terra (1983) – esta com a graça de ter sido cantada com o r retroflexo, tal como se fala em parte do interior do Brasil – surtiram efeito menor na plateia e pareceram enraizadas somente na memória afetiva do artista, que também cantou a poesia concreta de Pulsar (1979) – tecendo loas ao poeta Augusto de Campos, parceiro de Caetano na música feita a partir de versos publicados em 1975 – e incentivou o coro popular no refrão de A bossa nova é foda (2012).

Com vitalidade que desmente a proximidade dos 80 anos, Caetano parece dizer em cena que nenhuma força do mal virá fazê-lo calar. Noutras palavras, Caetano Veloso comprova no tempo atual do show Meu coco que continua sendo um dos artistas mais fundamentais do Brasil.

Caetano Veloso inclui a canção 'Cobre' no roteiro do show 'Meu coco'

Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio

? Eis as 26 músicas do roteiro inteiramente autoral seguido por Caetano Veloso em 8 de junho de 2022 na estreia carioca do show Meu coco na casa Vivo Rio, na cidade do Rio de Janeiro (RJ):

1. Avarandado (1967)

2. Meu coco (2021)

3. Anjos tronchos (2021)

4. Sampa (1978)

5. Muito romântico (1977)

6. Não vou deixar (2021)

7. You don't know me (1972)

8. Trilhos urbanos (1979)

9. Ciclâmen do Líbano (2021)

10. A Outra Banda da Terra (1983)

11. Araçá azul (1973)

12. Cobre (2021)

13. Cajuína (1979)

14. Reconvexo (1989)

15. Enzo Gabriel (2021)

16. O leãozinho (1977)

17. Itapuã (1991)

18. Pulsar (Caetano Veloso e Augusto de Campos, 1979)

19. A bossa nova é foda (2012)

20. Baby (1968)

21. Menino do Rio (1979)

21. Sem samba não dá (2021)

23. Lua de São Jorge (1979)

Bis:

24. Mansidão (1982)

25. Odara (1977)

26. Noite de cristal (1988)

Caetano Veloso com os músicos Lucas Nunes, Alberto Continentino e Rodrigo Tavares no show 'Meu coco'

Ricardo Nunes / Divulgação Vivo Rio