Autora de 'O Homem de Giz', C.J. Tudor lança livro com fogueiras, mártires e 1ª mulher protagonista

Autora de 'O Homem de Giz', C.J. Tudor lança livro com fogueiras, mártires e 1ª mulher protagonista

Intrínseca

"Muitas cidades pequenas têm um passado sombrio. A própria história está manchada com o sangue dos inocentes e foi escrita pelos impiedosos. O bem nem sempre trifunfa sobre o mal. Orações não vencem batalhas. Às vezes, precisamos do diabo do nosso lado. O problema é que, depois que ele vem, é difícil se livrar".

O trecho perdido no meio do quarto livro da britânica C.J. Tudor poderia ser a abertura de "Garotas em Chamas" ("The Burning Girls", no original). Lançado em março pela Intrínseca no Brasil, a obra se passa na pequena Chapel Croft, em Sussex, na Inglaterra – que tem, definitivamente, o que se pode chamar de "passado sombrio".

A capela da cidade é o local onde oito mártires protestantes foram queimados por não renunciarem a sua religião durante o reinado católico de Mary I (1553-1558). Entre os mártires, estavam duas meninas.

Para homenageá-los, os moradores da cidade queimam bonecos de gravetos todos os anos na data da perseguição: as "Garotas em Chamas".

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A história é baseada na realidade: a queima de protestantes, de fato, aconteceu no século 16. A capela de Chapel Croft é inspirada em uma que existe próxima à casa de Tudor, em East Sussex.

"A inspiração foi a capela. Parecia que havia uma história para contar. A área na verdade tem uma história muito sombria e macabra em torno dela – com a queima dos mártires protestantes pela Rainha Mary todas essas centenas de anos atrás, essa tradição de fogueiras, com procissões queimando tochas para celebrar", explica a autora do best-seller "O Homem de Giz", em entrevista ao G1.

C.J. Tudor

Mariel Kolmschot/via Intrínseca

O local é o ponto de partida do livro: é para lá que a vigária Jack Brooks é transferida de sua antiga diocese depois de uma série de eventos perturbadores. Com ela vai a filha, Flo, de 15 anos.

Lá, elas precisam enfrentar a desconfiança dos moradores – porque Jack é nova na cidade e, principalmente, uma mulher na Igreja (Protestante). A trama é a primeira de Tudor com uma personagem principal feminina.

"Há muito mais personagens femininas fortes e diferentes. Virou muito um livro sobre mulheres, eu acho. E eu meio que queria que o livro fosse muito mais sobre mulheres. Ele fala muito sobre como as mulheres são tratadas e vistas na sociedade em muitos aspectos. E isso meio que se tornou um tema recorrente ao longo do livro", diz a autora.

Ela conta que, inicialmente, a ideia era de que o personagem principal fosse um padre homem.

"Mas então comecei a pensar 'se vou escrever esse tipo de padre não convencional, isso já foi feito antes com personagens masculinos. O que o tornaria ainda mais interessante seria torná-lo um sacerdote feminino'", relata Tudor.

Jack também não é uma vigária convencional: sua interpretação da religião em temas como sexo, suicídio e até da própria violência perpetrada contra mulheres pela Igreja – é mais flexível do que a de colegas religiosos homens que aparecem no livro.

"Ela é mais Novo Testamento do que Antigo Testamento, devemos dizer", diz Tudor.

E não é só por suas visões pouco ortodoxas que Jack é vista com maus olhos na cidade. Quando ela e Flo começam a trazer à tona, mesmo sem querer, os mistérios que rondam o passado sombrio de Chapel Croft e seus moradores, quase ninguém fica satisfeito.

Afinal, o que aconteceu com o padre que liderava a capela antes dela? Onde foram parar as duas adolescentes que, há trinta anos, sumiram da cidade sem deixar vestígios?

E por que ela e Flo estão vendo imagens de garotas sendo queimadas – as mártires de Sussex, as "Garotas em Chamas" – quando as meninas estão mortas há 500 anos?

Religião e saúde mental

Além dos segredos e da violência que rondam Chapel Croft, Jack também faz reflexões sobre religião e saúde mental. Em um trecho, afirma que "a crença deveria ser uma escolha consciente, não uma lavagem cerebral feita quando a pessoa é jovem demais para entender ou questionar".

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Tudor, que não é religiosa, diz que o livro não é um ataque à religião. Ela afirma que a obra foi bem recebida entre pessoas religiosas que conhece.

"Eu realmente tive muita sorte que alguém que eu conhecia nas redes sociais era um padre. Eu meio que pedi a ele alguns conselhos sobre isso. Eu não queria alienar as pessoas – foi muito difícil, porque eu não sou uma pessoa religiosa, mas queria tentar encontrar esse equilíbrio", diz.

"O mesmo [aconteceu] com Jack, porque eu queria que ela fosse convincente e que ressoasse com pessoas que não eram religiosas, mas ainda assim convincente como alguém que trabalha dentro da Igreja", acrescenta.

Uma das questões que aparecem bastante no livro é, por exemplo, a relação entre saúde mental e religião:

"A oração é um meio útil de concentrar a mente. Mas não é uma cura mágica. Deus não é terapeuta nem psiquiatra. Ainda precisamos do apoio de outras pessoas, e às vezes de profissionais." – C.J. Tudor, em "Garotas em Chamas"

"Eu acho que a Igreja tem que trabalhar nos tempos modernos, e eu acho que Jack tem muito a ver com isso – é por isso que ela fala sobre saúde mental e não ver as coisas como um pecado, ou a maneira como a Igreja costumava lidar com doenças mentais. Ou, de novo, o tratamento das mulheres ao longo da história", afirma Tudor. "Não queria que fosse algo desrespeitoso para a Igreja".

Próximos livros

Assim como seus outros três livros – inclusive "O Homem de Giz", com mais de 300 mil cópias no Brasil – "Garotas em Chamas" já foi os direitos comprados para a televisão e será roteirizado por Hans Rosenfeldt (das séries "The Bridge" e "Marcella"). Mas não há previsão de estreia nem elenco em mente, afirma Tudor.

"Acho que às vezes você pode ter a ideia de alguém que se encaixa no perfil, mas na verdade alguém completamente diferente é brilhante", diz a autora.

O que há, por enquanto, são planos para os livros cinco e seis. Até agora, um possível título para o próximo lançamento – seu quinto, que está em edição – é "The Sixth" ("O Sexto" ou "A Sexta", em inglês), "só para confundir as pessoas", diz Tudor.

'The Sixth', possível nome do sexto livro de C.J. Tudor.

Reprodução/Twitter @cjtudor

"É uma mãe e filha novamente. É uma filha mais nova desta vez, de 10 anos. Meio que remonta muito a ' Homem de Giz', em termos de combinar uma narrativa do passado com uma narrativa do presente. E também – espero, porque meu editor ainda não me respondeu – trará de volta um personagem de um livro anterior. Isso se meu editor permitir."

Trecho de 'The Sixth', possível nome do quinto livro da britânica C.J. Tudor.

Reprodução/Twitter @cjtudor

E para o sexto livro? Esse ainda está sendo escrito, e ela não dá tantos detalhes.

"Para o livro seis, estou fazendo algo bem diferente novamente. Acho que você tem que continuar fazendo isso, porque é bom continuar reinventando e fazendo coisas diferentes como escritora. E espero que como leitor também, porque obviamente as pessoas leem seus livros porque gostam de certo tipo de história, mas elas também não querem que a mesma coisa se repita. É bom surpreender as pessoas", diz.

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