Vinícius Cantuária e Zeca Baleiro fazem diário de viagem nas curvas do tempo do álbum 'Naus'

Vinícius Cantuária e Zeca Baleiro fazem diário de viagem nas curvas do tempo do álbum 'Naus'
Disco sintetiza influências dos compositores ao navegar entre samba, folk, canção latino-americana, bossa nova e música nordestina com repertório inteiramente inédito e autoral. Capa do álbum 'Naus', de Vinícius Cantuária e Zeca Baleiro

Simone Kontraluz

Resenha de álbum

Título: Naus

Artistas: Vinícius Cantuária e Zeca Baleiro

Edição: Sonastério / Saravá Discos

Cotação: ? ? ? ½

? É sintomático que o encontro que serviu de estopim para a criação de Naus – primeiro álbum conjunto Vinícius Cantuária e Zeca Baleiro – tenha acontecido em aeroporto e se desdobrado durante conversa dos artistas ao longo de voo de avião.

No mundo digital desde 8 de julho, o álbum Naus soa como diário de viagem que irmana o manauara Cantuária – de 71 anos completados em abril – e o maranhense Baleiro – de 56 anos festejados também em abril deste turbulento 2022 – nas curvas do tempo citadas no verso inicial de Relento, canção estradeira de acento folk que inicia o percurso dos viajantes em disco de repertório inteiramente inédito e autoral.

Fruto da parceria iniciada pelos artistas em 2019 e estendida entre 2020 e 2021, ano da gravação de Naus no estúdio mineiro Sonastério, o álbum alinha 11 das 14 músicas compostas por Cantuária com Baleiro, letrista das melodias enviadas pelo parceiro que, residente na cidade do Rio de Janeiro (RJ) desde os nove anos, migrou para Nova York (EUA) em 1994 sem nunca deixar de ser musicalmente brasileiro.

Gravado com produção musical do engenheiro de som Walter Costa, o álbum Naus conduz os viajantes solitários por rota essencialmente nacional, ainda que a balada em espanhol Flores de invierno represente pico de beleza no disco ao evocar as sintaxes melódicas e poéticas de cantautores latino-americanos, especialmente dos cubanos Pablo Milanés e Silvio Rodríguez.

Além de unirem vozes no canto das 11 músicas do disco Naus, Baleiro e Cantuária – ambos instrumentistas polivalentes – se alternam nos toques de violões, pianos, guitarras, synths e das percussões que embasam Sol da beleza, faixa ornamentada com o baixo de Dadi e o violão pizzicato de Rogério Delayon.

Em Naus, os condutores, embora viajantes solitários, acomodam na embarcação (grandes) músicos convidados para abrilhantar o disco. Primeiro grande momento do álbum, a densa e melancólica canção-título Naus tem notas salpicadas com precisão pelo pianista Ryuichi Sakamoto no tempo minimalista da faixa.

Na sequência, o acordeom de Cosme Vieira em Carona desloca Naus para mares nordestinos – em sintonia com a letra que cita o fervor no Ceará em torno do sacerdote Cícero Romão Batista (1844 – 1934), o já mítico Padre Cícero – enquanto o violão tocado por Cantuária em Alma bossa nova vai dar em praia carioca, justificando o título dessa canção em cuja letra Baleiro cita nominalmente Antonio Carlos Jobim (1927 – 1994) e o sobrevivente Carlos Lyra, de 89 anos completados em maio.

E como bossa nova é em síntese samba, Chuva na Guanabara cai no álbum Naus com a tentativa vã de remeter à cadência bonita dos sambas de Gilberto Gil, com Baleiro marcando o ritmo em caixa de fósforos e com letra que remete às divindades afro-brasileiras, como se o autor estivesse ciente de que o samba nasceu lá na Bahia e cresceu no Rio de Janeiro.

Zeca Baleiro (à esquerda) e Vinícius Cantuária apresentam 11 parcerias no álbum 'Naus'

Simone Kontraluz / Divulgação

Espécie de minicordel, O dia em que Jeremias Vaqueiro viu o mar pela primeira vez traz o álbum Naus de volta para terras nordestinas sem pisar de fato na terra árida do sertão. Integrante da banda O Terço entre 1974 e 1977, após Cantuária ter integrado o grupo carioca de rock progressivo até 1973, Flávio Venturini toca órgão na faixa.

A viagem de Naus tem múltiplas escalas. Se Flor do beijo desabrocha climática, com texturas sintéticas que evitam os clichês eletrônicos em gravação formatada com o trombone de Tiquinho, Praia – canção menos imponente no conjunto da obra dos compositores – é faixa refrescada por brisa do mar que sopra evocações de bossas e mornas.

Destino final, Retirada adensa o clima, soando quase soturna, noturna, como se “o véu do amor” citado na letra encobrisse esquinas mineiras no fecho desse álbum gravado e finalizado entre estúdios de Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ) e São Paulo (SP) entre setembro de 2021 e maio deste ano de 2021.

No fim da viagem, fica claro que o álbum Naus navega por rota própria, fazendo a síntese das influências das obras de Vinícius Cantuária – cantor e compositor popularizado no universo pop dos anos 1980 com canções como Lua e estrela (1981), Só você (1984, revitalizada por Fábio Jr. em 1997) e Na canção (1985) antes de ir para os Estados Unidos recuperar uma brasilidade oculta nessa fase pop da discografia – e Zeca Baleiro, artista projetado nacionalmente a partir de 1997.

Disco que merecia capa expressiva pela natureza do encontro inédito, Naus se equilibra bem entre esses dois rios distintos e já caudalosos que convergem em 2022 nas curvas do tempo que rege o bom álbum conjunto dos artistas.

Zeca Baleiro (à esquerda) e Vinícius Cantuária lançam álbum que destaca a canção-título 'Naus'

Simone Kontraluz / Divulgação