Falta talento, sobra "falta de vergonha"

Sucessos de funk e forró se espalham com trechos de hits estrangeiros: pode isso?

Falta talento, sobra "falta de vergonha"

Pedaços de hits gringos em canções nacionais estão em alta. Lei exige autorização, mas cláusula de 'pequenos trechos' e até simpatia de astros como The Weeknd pode abrir brecha; entenda.

Eu já ouvi essa parte da música antes... Essa sensação se repete em sucessos brasileiros de funk e forró que incluem pequenos trechos não autorizados hits de pop estrangeiro. De arrocha-funk com The Weeknd a pisadinha com Daddy Yankee, parece que vale tudo.

O Brasil teve um hit nº1 recente neste formato: "Tapão na raba", de Raí Saia Rodada, tem trecho de "Roses", de Saint Jhn. Há mais sucessos unidos: DJ Guuga com The Weeknd e Lady Gaga, Anderson e Véi da Pisadinha com Daddy Yankee, DJ Lucas Beat com Red Hot Chili Peppers... (veja vídeo acima).

Em geral, os trechos não são a base, mas pequenos acréscimos às músicas. É como se os DJs brasileiros incluíssem as estrelas gringas como "feats", ou convidados involuntários das faixas. Parecem também querer mostrar que suas produções de funk e forró estão antenados com o mundo.

Todas esses samples (uso de trecho de uma gravação em outra) podem ser questionadas pelos estrangeiros. O uso da obra de um terceiro precisa de autorização, segundo a lei brasileira de direitos autorais.

No entanto, os trechos com "empréstimo compulsório" continuam no ar, com muito sucesso. O G1 conversou com a advogada especialista em direitos autorais Luciana Minada para entender os problemas e as brechas dessa fórmula. Ela explicou que:

  • A lei deixa claro que o uso deve ser autorizado. Todas essas músicas estão sujeitas, sim, a uma carta de representes do popstar "sampleado" pedindo a retirada do ar ou propondo acordo financeiro para o uso, sob risco de processo.
  • Mas há uma cláusula que abre uma exceção para a "reprodução de pequenos trechos, desde que não seja o objeto principal nem cause prejuízo aos autores". Dependendo do caso de uma eventual disputa, essa cláusula pode ser um argumento.
  • Mesmo em casos descarados, maiores que "pequenos trechos", o autor ou dono dos direitos da música original teria que questionar o uso. Pode ser que ele não faça isso, como o canadense The Weeknd, que curtiu e postou "Cabaré" do DJ Guuga. Ficou por isso mesmo.
  • Esse não é um fenômeno novo (vide as "inspirações" estrangeiras das bandas nacionais de rock dos anos 80). Hoje ele aparece em cenas eletrônicas criativas e dinâmicas como o funk e o forró, amados pelo público e longe do circuito das gravadoras multinacionais.
  • Apesar de deixar claro que todo uso deve ser autorizado, a lei brasileira tem zonas cinzentas, que não definem o que seriam os "pequenos trechos" ou o que é um plágio. Processos costumam ser longos e, em possíveis problemas, são comuns acordos extrajudiciais.
Forró com gringos e sem crédito

Forró com gringos e sem crédito

"A lei traz um parâmetro geral, mas toda análise é caso a caso", diz Luciana. "A interpretação do que seria um 'pequeno trecho', por exemplo, cabe ao juiz. Na questão do plágio, também não há uma definição específica", explica a advogada do escritório Kasznar Leonardos.

'"Às vezes é só um trechinho mesmo e a gente até poderia pensar se não caberia falar nessa exceção de pequenos trechos. Pode ter uma música de quatro minutos com um trecho de poucos segundos" ela exemplifica.

"Pode não estar prejudicando a exploração da obra original. Ou seja: a pessoa não deixa de ouvir a música internacional foi inserido aí um 'sample' no início de uma música aqui no Brasil. Uma das coisas a serem observadas e se está havendo esse prejuízo", diz Luciana.

"Muitas vezes é uma coisa que se encaixa ali, que o DJ acha bacana, mas não com o intuito de associar a música dele à obra original. Entra até no processo criativo de olhar as coisas no exterior e criar algo seu, novo, uma batida semelhante com algo no refrão com o mesmo sentido", ela diz.

Há samples mais ou menos descarados. Mas é o nível do sucesso que costuma fazer mais diferença mesmo. "Quando entra nas paradas, isso chama atenção das gravadoras e editoras musicais, que são maiores e sabem que pode dar problema no futuro", ela aponta.

Foi o caso de "Tapão na raba", gravada primeiro pelos autores Israell Muniz e Nonony, com sample de "Roses", do rapper Saint Jhn. Quando foi regravada por Raí Saia Rodada e chegou ao nº1 as paradas, a gravadora Som Livre trocou o trecho por um teclado com melodia parecida, como revelou o G1.

Um caso semelhante aconteceu com o DJ paulista Lucas Beat. Ele usou um trecho de "Otherside", dos Red Hot Chili Peppers em "Tuts tuts quero ver", que foi um sucesso estrondoso no TikTok e no YouTube em 2020, com mais de 100 milhões de views.

Ele contou ao G1 que não se preocupou quando criou a música, pois já tinha usado o mesmo trecho em outras faixas. "Eu falei: 'Ah, das outras vezes que eu usei ninguém viu mesmo. Vou usar. Gosto muito desse solinho'", ele lembra.

Mas quando a música virou hit e ele conseguiu gravar um clipe pelo canal de funk Kondzilla e subir a faixa no Spotify, o receio foi maior. Ele regravou o trecho com um contrabaixo semelhante, em estratégia igual à da Som Livre.

Simpatia com brasileiros

Além da tática "uso o que quiser, troco se der problema", há outra possibilidade: que o problema nem apareça. Foi o caso de "Cabaré", do DJ Guuga, que chegou aos ouvidos do canadense The Weeknd. Ele curtiu e tocou em seu programa na Apple Music. A faixa segue no ar sem contestação de autoria.

"Às vezes o titular nem se incomoda. Isso acontece. Teve uma polêmica quando a Katy Perry lançou "Roar", e a Sara Bareilles tinha uma música parecida chamada "Brave". Os fãs brigaram, mas própria Sara falou que não se incomodava. O que só reforça essa questão é muito casuística", diz Luciana.

Acordos possíveis, jeitinhos prováveis

A atitude correta e que vai evitar qualquer problema é sempre pedir autorização prévia, ela diz. Claro que a dica não vai servir para um DJ de funk ou forró do interior do Brasil que queira falar com a Lady Gaga. Mas pode até ser possível caso essa faixa seja lançada por uma grande gravadora nacional.

No caso de uma autorização, pode ser combinado um percentual dos direitos autorais para o dono da obra original, diz Luciana. E o Brasil tem um mercado tão grande e único que pode até servir como argumento nesse tipo de acordo.

"Não deixa de ser exposição para o artista de fora no cenário popular brasileiro, então pode ser uma moeda de troca. Talvez a música original jamais entraria se não fosse por meio desses artistas populares", ela diz. The Weeknd parece ter pensado assim. Vamos ver os próximos...