Quando Almério estiver cantando Cazuza, entenda o álbum 'Tudo é amor' como nova versão de velha história

Quando Almério estiver cantando Cazuza, entenda o álbum 'Tudo é amor' como nova versão de velha história
Capa do álbum 'Tudo é amor – Almério canta Cazuza'

Ana Stewart

Resenha de álbum

Título: Tudo é amor – Almério canta Cazuza

Artista: Almério

Edição: Parças do Bem / Altafonte

Cotação: * * * *

? Por mais improvável que seja, há afinidade entre a poética crua e afiada das letras do cantor e compositor carioca Cazuza (4 de abril de 1958 – 7 de julho de 1990) e o tom corrosivo do álbum autoral, Desempena (2017), que ampliou a visibilidade de Almério Rodrigo Menezes Feitosa no universo pop brasileiro.

No álbum Tudo é amor – Almério canta Cazuza, lançado em 25 de novembro, o link contribui para ajustar a sintaxe direta de Cazuza à voz agreste e por vezes andrógina desse cantor e compositor pernambucano de 41 anos, nascido em 1º de novembro de 1980 em Altinho (PE) quando Cazuza ainda dava os primeiros passos na música em carreira que seria alavancada com a admissão como vocalista da banda carioca Barão Vermelho em 1981.

Cidade do interior de Pernambuco, Altinho (PE) foi o ponto de partida da rota existencial e artística de Almério, que migrou aos 20 anos para Caruaru (PE) – onde se lançou como ator e cantor em 2003 – e chegou ao Recife (PE) aos 33 anos, trazendo na bagagem o primeiro álbum, Almério (2013), e um contato mais forte com a obra de Cazuza através da audição da música Vai à luta (Rogério Meanda e Cazuza, 1987) em coletânea do cantor rotulado como Exagerado.

Não por acaso, Vai à luta abre o disco Tudo é amor como acerto de contas de Almério com a vida que encarou se assumindo gay e artista.

Gravado com produção musical de Pupillo Oliveira, sob direção artística de Marcus Preto, o álbum Tudo é amor – Almério canta Cazuza corre o risco de driblar grandes músicas do compositor (embora haja algumas de notória magnitude no repertório) para evitar ser espécie de greatest hits que esbarraria na comparação inevitável com os registros fonográficos mais conhecidos desses sucessos.

Mesmo feita por Almério com a adesão de Ney Matogrosso, cantor ligado intimamente à história de Cazuza, o rock-samba Brasil (George Israel, Nilo Romero e Cazuza, 1988) cai nessa armadilha e soa como mero cover porque a lâmina vocal de Gal Costa já afiou os versos cortantes como faca na gravação original de 1988 e porque Ney está cantando sem o habitual viço vocal. Ainda assim, cabe menção honrosa na faixa – apresentada como primeiro single do álbum em 4 de abril, dia do 63º aniversário de Cazuza – para a firmeza da marcação da bateria e da percussão de Pupillo.

Ney Matogrosso canta 'Brasil' com Almério no momento mais opaco do disco 'Tudo é amor'

Ana Migliari / Divulgação

O disco Tudo é amor surpreende e cativa mais quando Almério desenterra Companhia (Roberto Frejat, Cazuza e Ezequiel Neves, 1987), balada em que o poeta receitou o desapego para arejar a relação a dois. Até então gravada somente por Zizi Possi no álbum Amor & música (1987), Companhia é de início cantada por Almério somente com o toque do piano de André Lima, mas ganha na segunda parte a pegada da banda arregimentada para o disco.

Formada pelos músicos Fábio Sá (baixo) e Juliano Holanda (guitarra) com os já citados André Lima e Pupillo, essa banda dialoga preferencialmente com o universo do pop rock sem se limitar ao gênero. Assim como a obra de Cazuza, aliás.

Se Amor amor (Cazuza, Roberto Frejat e George Israel, 1984), tema da trilha sonora do filme Bete balanço (1984), cai na pista das boates dos anos 1980 com o neon sugerido pelo synth de André Lima, Cobaias de Deus (Angela Ro Ro e Cazuza, 1989) soa mais interiorizada em gravação que junta a voz de Almério somente com o baixo acústico de Fábio Sá e o piano do mesmo André Lima.

Essa formação minimalista também dá o tom do Blues da piedade (Roberto Frejat e Cazuza, 1988), cantado com a devida ênfase nos versos a rigor impiedosos com a mesquinharia da natureza humana. Já Minha flor, meu bebê (Dé Palmeira e Cazuza, 1988) desabrocha com ecos da sonoridade sintetizada dos anos 1980 sem soar exageradamente retrô.

Hit radiofônico do segundo álbum solo de Cazuza, Só se for a dois (1987), a balada power pop O nosso amor a gente inventa (Rogério Meanda, João Rebouças e Cazuza, 1987) combina bem a pegada do rock com o toque sintético do som da década de 1980, dando mais peso ao rock. O nosso amor a gente inventa soa especial no álbum, até pelo fato de a estória romântica contada nessa música ter sido (quase) esquecida ao longo dos últimos 30 anos.

Almério acerta o tom de 'Eu queria ter uma bomba' em dueto com Céu

Ana Stewart / Divulgação

Única música composta somente por Cazuza, Eu queria ter uma bomba (1985) – sobra do terceiro e último álbum do Barão Vermelho com o vocalista original, Maior abandonado (1984) – é disparada com a devida suavidade que prepara a cama para a entrada de Céu, cantora convidada da faixa. O efeito é ótimo. A abordagem da balada é ponto alto do disco. Na sequência, Almério reacende Perto do fogo (Rita Lee e Cazuza, 1989) com aura folk sem o toque de violões (a julgar pela ficha técnica).

Por fim, no magistral arremate do disco, há o momento mais emocionante do álbum Tudo é amor. Em Quando eu estiver cantando (João Rebouças e Cazuza, 1989), o canto de Almério é ouvido a capella nos quatro primeiros versos dessa canção sobre ofício que cruza as vozes de Almério e Cazuza na linha do tempo da música brasileira.

Até que entra o órgão Hammond de André Lima evocando o ambiente sacro de igreja. Ou o universo íntimo de um banheiro, igreja de todos os bêbados, templo dos que se sentem solitários mesmo em meio a multidões.

Porque o canto foi o que deu vida a Cazuza ao longo dos anos 1980 e o que hoje mantém o poeta vivo através de outras vozes, como a de Almério. Porque o canto é o ritual tanto profano quanto sagrado que legitima o encontro de Almério com Cazuza em Tudo é amor, álbum que deve ser percebido como a nova versão de uma velha história que acontece a todo momento quando alguém vai à luta. O resto, deixa pra lá...

Almério fecha o álbum de forma magistral com a abordagem de 'Quando eu estiver cantando'

Divulgação