Aldir Blanc renasce eterno, com parceiros novos e antigos, em dois álbuns com letras do artesão das palavras

Aldir Blanc renasce eterno, com parceiros novos e antigos, em dois álbuns com letras do artesão das palavras
Compositor carioca é celebrado postumamente em 'Como canções e epidemias', tributo exuberante de Augusto Martins e Paulo Malaguti Pauleira, e em disco com 12 músicas inéditas que destaca gravações de Alexandre Nero e Chico Buarque. Capa do álbum 'Como canções e epidemias', de Augusto Martins & Paulo Malaguti Pauleira

Augusto Martins

Resenha de álbuns

Títulos: Como canções e epidemias / Aldir Blanc inédito

Artistas: Augusto Martins & Paulo Malaguti Pauleira / Alexandre Nero, Ana de Hollanda, Chico Buarque, Clarisse Grova, Dori Caymmi, Guinga, João Bosco, Joyce Moreno, Leila Pinheiro, Maria Bethânia, Moacyr Luz, Moyseis Marques e Sueli Costa

Edição: Mills Records / Biscoito Fino

Cotação: * * * * 1/2 / * * * *

? Os 75 anos de nascimento do bardo carioca Aldir Blanc (2 de setembro de 1946 – 4 de maio de 2020) – compositor de sintaxe própria e inalcançável na escrita da MPB – motivaram dois álbuns com músicas da obra do letrista morto no ano passado, vítima de covid-19.

Ambos os discos são relevantes. O primeiro, Como canções e epidemias, junta o cantor carioca Augusto Martins com o pianista Paulo Malaguti Pauleira em registros de 14 músicas com letras de Aldir Blanc para melodias de 11 parceiros – que seriam 12 se a anunciada Ave rara (1993), tema de Aldir com Edu Lobo, tivesse permanecido na seleção final do repertório.

Com músicas como Altos e baixos (Sueli Costa e Aldir Blanc, 1979), o álbum do duo foi editado em 2 de setembro, dia do 75º aniversário do poeta carioca, hábil construtor de letras imagéticas e por vezes surrealistas.

Já o segundo disco foi lançado em CD neste mês de outubro, mas está disponível em edição digital desde 24 de setembro.

Trata-se de Aldir Blanc inédito, tributo que cumpre o que expressa o título, ampliando o cancioneiro musical do compositor ao apresentar 12 letras inéditas que viraram músicas (algumas já com o letrista morto) por obra de parceiros novos e póstumos (Alexandre Nero, Dori Caymmi e Joyce Moreno) e de colaboradores antigos e fundamentais (João Bosco, Guinga e Moacyr Luz).

Quem dá voz a essas 12 músicas inéditas é elenco diverso, alicerçado pelas presenças soberanas de Chico Buarque e Maria Bethânia.

Paulo Malaguti Pauleira (à esquerda) e Augusto Martins

Divulgação

No todo, os dois álbuns totalizam 26 gravações que montam amplo painel da poética do bardo. E cabe ressaltar que, embora o disco de Augusto Martins e Paulo Malaguti Pauleira apresente somente uma música inédita (Muito além do jardim, canção bucólica em que o melodista Moacyr Luz persegue o estilo intrincado da obra de Guinga, respaldado pela letra em que Aldir verte lágrimas por amor partido), cantor e pianista tiram do baú joias raras que, com o devido polimento do duo, soam como novas.

São os casos da valsa Odalisca (Guinga e Aldir Blanc, 1993) e sobretudo de Retrato cantado (1987), parceria de Aldir com Márcio Proença (1943 – 2017).

Música apresentada na voz de Eduardo Conde (1946 – 2003), sem repercussão, Retrato cantado perfila sem comiseração o eu lírico dessa confessional canção, deixando entrever sombras da mente de quem se assume no íntimo como “o bárbaro sem véu, o estripador cruel”. É Aldir na veia!

Para muitos ouvidos, também soarão inéditos o samba-canção Causa perdida (1993) – marco inaugural da parceria da baiana cheia de bossa Rosa Passos com o letrista carioca – e o até então esquecido sambolero Querido diário (1982).

Essa pérola rara da parceria de Aldir Blanc com João Bosco é lustrada por Martins com a letra original, censurada em 1980 por ter “Me masturbei” em um dos versos (o único registro fonográfico até então, feito por Bosco no álbum Comissão de frente, em 1982, veio com “Me machuquei” no lugar do verso proibido).

Ainda que alicerçado no formato voz & piano, próprio de música de câmara, o álbum Como canções e pandemias se espraia por outros horizontes. Assentado em terreiro afro-brasileiro, o samba Filho de Núbia e Nilo (Moacyr Luz e Aldir Blanc, 1995) gravita em torno da roda baiana, com toque de ijexá, palmas e a voz do convidado Zé Renato.

Outro samba, Vale a pena ouvir de novo (Sombra e Aldir Blanc, 2003), se insinua pagodeiro, com direito a um pandeiro intruso, como o duo se estivesse na quadra do Cacique de Ramos nos áureos anos 1980. É quando o piano de Pauleira soa percussivo, assim como em Êxtase (1981), samba de Aldir com Djavan, construído com as síncopes oblíquas típicas da obra do compositor alagoano.

Parceria de Aldir com Ivan Lins, com quem Leila Pinheiro fez a gravação original da música, Por favor (1998) é blues ambientado em atmosfera jazzy, esfumaçada, de boate ou cabaré, evidenciando o alcance vocal de Martins no agudo suplicante do fim da faixa.

Entre abordagens de músicas mais conhecidas como Corsário (João Bosco e Aldir Blanc, 1975) e Resposta ao tempo (Cristovão Bastos e Aldir Blanc, 1998) – menos sedutora ao ser revivida sem a cadência original de bolero e com citação ao piano da levada de lundu que pautou Tua cantiga (Cristovão Bastos e Aldir Blanc, 2017) – e O rancho da goiabada (João Bosco e Aldir Blanc, 1975), ouvida em outra marcha, Augusto Martins se revela cantor de técnica apurada.

A qualidade vocal do intérprete salta aos ouvidos já na ferocidade de Caça à raposa (João Bosco e Aldir Blanc, 1975), música que abre o álbum e de cuja letra foi extraído o nome do álbum, Como canções e epidemias, título sobressalente na discografia de Augusto Martins, cantor que deveria ser mais ouvido pelo Brasil.

Capa do álbum 'Aldir Blanc inédito'

Elifas Andreato

Já o álbum Aldir Blanc inédito reitera, com (bem) mais altos do que baixos, a verve do bardo. Com capa assinada por Elifas Andreato, o disco foi feito sob a direção musical de Jorge Helder, com arranjos de Cristovão Bastos.

Derivado de inutilizado tema feito para campanha de cervejaria, Agora eu sou diretoria é samba em que João Bosco emula a cadência dos sucessos acumulados pela dupla no gênero nos anos 1970 e 1980. A letra resulta aquém do histórico dessa parceria fundamental, assim como o samba em si, cantado pelo próprio Bosco.

Canção feita por Moacyr Luz e Aldir Blanc, Palácio de lágrimas é descortinada com a nobreza de Maria Bethânia, em interpretação interiorizada, emoldurada pelas sete cordas do violão de João Camarero e pela viola caipira de Paulo Dáfilin.

Baião da muda é fluente baião de três compositores, juntando Moyseis Marques (intérprete do tema), Nei Lopes e Aldir Blanc. Obra-prima da safra de 12 inéditas, Voo cego é canção em forma de soneto composta por Leandro Braga com letra do bardo. Já em si bela, Voo cego desliza em céu de brigadeiro no canto enxuto de Chico Buarque.

Chico Buarque na gravação do soneto 'Voo cego', obra-prima do disco

Gabriela Perez / Divulgação

Sobra da parceria de Guinga com Aldir, tendo sido composta em meados dos anos 1990, Navio negreiro emerge com o harmonioso requinte típico da discografia de Leila Pinheiro, intérprete especialista da obra dos compositores.

Escrita em 1993, a letra de Provavelmente em Búzios virou samba-canção com a melodia de Dori Caymmi, intérprete da música.

Também são sambas-canção Ator de pantomima (Sueli Costa e Aldir Blanc), Mulher lunar (Luiz Carlos da Vila, Moacyr Luz e Aldir Blanc) e Outro último desejo (Clarisse Grova e Aldir Blanc), ouvidos no disco nas vozes de Sueli Costa (com emoção espessa transmitida pelo fio de voz) Moacyr Luz e Clarisse Grova, respectivamente.

Cabe ressaltar que Grova dá show de interpretação no tema autoral que lhe foi confiado. Composição de 2012, Outro último desejo se alimenta do samba-canção Último desejo (1937) – uma das obras-primas do cancioneiro do desbravador Noel Rosa (1910 – 1937) – em diálogo sublinhado pela maestria da cantora e também coautora da música.

Gênero musical vizinho do samba-canção, o bolero dita o ritmo de Acalento, composição surgida de letra musicada por Moacyr Luz (a primeira parte) e João Bosco (a segunda) e apresentada na voz de Ana de Hollanda.

Já Aqui, daqui é a primeira parceria de Joyce Moreno com Aldir. A compositora musicou poesia do letrista, publicada em jornal carioca de 1986. Mas a bossa é que a letra, feminina, parece da lavra poética da compositora.

No fecho do disco, a densa teatralidade de Virulência – parceria de Aldir com Antonio Saraiva e com Alexandre Nero, intérprete da faixa – conecta o bardo com dissonâncias do Brasil de 2021 e se impõe, ao lado da já mencionada Voo cego, como os dois pontos mais altos da safra revelada por Aldir Blanc inédito, álbum que, juntamente com o exuberante tributo de Augusto Martins e Paulo Malaguti Pauleira ao bardo, atesta a perenidade do artesão das palavras no universo da MPB.

Alexandre Nero na gravação de 'Virulência', destaque do álbum 'Aldir Blanc inédito'

Gabriela Perez / Divulgação