Ana Cañas poda excessos ao cantar Belchior sem firulas em álbum com as melhores músicas do compositor

Ana Cañas poda excessos ao cantar Belchior sem firulas em álbum com as melhores músicas do compositor
Capa do álbum 'Ana Cañas canta Belchior'

Marcus Steinmeyer

Resenha de álbum

Título: Ana Cañas canta Belchior

Artista: Ana Cañas

Edição: Guela Records / Believe

Cotação: * * * *

? No canto intenso de Ana Cañas, um tango argentino vai tão bem quanto um blues. Sexto álbum de estúdio da artista, Ana Cañas canta Belchior se desvia dessa linha intensa e surpreende pelo polimento dado pela artista paulistana na habitual impetuosidade vocal.

Sem as firulas observadas na aclamada live de agosto de 2020 que gerou o disco gravado em estúdio, com produção musical orquestrada por Cañas com o guitarrista e violonista Fabá Jimenez, a cantora aborda o cancioneiro de Antonio Carlos Belchior (26 de outubro de 1946 – 30 de abril de 2017) com limpidez que põe em primeiro plano o discurso angustiado do compositor cearense.

Ainda que as gravações das 12 músicas resultem com temperatura similar, diluindo por vezes as inquietações expostas pelo compositor em letras que retrataram impasses geracionais ainda atuais em 2021, a coesão do repertório – certeiro best of da obra sedimentada pelo artista ao longo da década de 1970 – se alia ao apuro vocal da intérprete e faz do álbum Ana Cañas canta Belchior um ponto alto de discografia até então essencialmente autoral.

Embora já clichê, a expressão “tempo de delicadeza” se ajusta ao tom imprimido pela artista em músicas como Sujeito de sorte (1976), Divina comédia humana (1978) e Comentário a respeito de John (1979) com os toques de instrumentistas como Fábio Sá (baixo) e Thiago Big Rabello (bateria).

Ao fugir da atmosfera da discografia de Belchior e de registros icônicos de algumas músicas, feitos por cantoras como Vanusa (1947 – 2020), intérprete original de Paralelas (1975), Cañas canta Belchior com personalidade, seguindo linha que faz com que o álbum alcance coesão e deixe de soar como mero registro de estúdio da live.

Parece fácil, mas manter a coerência e a identidade ao dar voz a um cancioneiro tão abordado nos últimos anos é proeza digna de aplausos.

Basta citar a opção por cantar Como nosso pais (1976) no fecho do disco, em clima de música de câmara, somente com o toque do piano de Adriano Grineberg (teclados e órgão Hammond). É forma inteligente de evitar comparações com a gravação soberana de Elis Regina (1945 – 1982), imortalizada no álbum Falso brilhante (1976).

Cañas poda excessos – inclusive instrumentais – ao cantar Belchior. Iniciado a capella, o registro de Alucinação (1976) – música que Cañas já abordava em shows antes de fazer a live com o cancioneiro de Belchior – evidencia e exemplifica o minimalismo dos arranjos do álbum.

Ana Cañas canta 12 músicas lançadas por Belchior ao longo dos anos 1970

Marcus Steinmeyer / Divulgação

Há uma ou outra ousadia estilística – como trazer o rock Velha roupa colorida (1976) para universo evocativo do rocksteady jamaicano – em disco que soa extremamente reverente à arquitetura de cancioneiro calcado na força da mensagem.

Embora pontuada pelo toque de guitarra, Coração selvagem (1977) bate na abertura do álbum no espírito do folk. É na levada do violão que Cañas ressoa Galos, noites e quintais (1976).

Já Apenas um rapaz latino-americano (1976) embute algo de blues nas entranhas de gravação em que Cañas reitera a intenção de cantar com suavidade – escolha que pode afastar ouvintes que esperavam ouvir a potência que moveu abordagens pouco conhecidas desse standard de Belchior, como a feita pela cantora Cláudia em disco de 1977.

Para quem é refratário a arroubos vocais, marca mais associada às intérpretes da MPB que gerou Belchior do que ao canto da geração à qual pertence Ana Cañas, o álbum reapresenta o compositor para ouvintes que talvez nunca tenham escutado Na hora do almoço (1971) – retrato ainda dilacerante do distanciamento existencial que emudece uma família – e Fotografia 3x4 (1976).

Em Medo de avião (1979), hit mais pop de Belchior, Cañas solta alguns “yeah yeah” que remetem ao universo dos Beatles, grupo referencial na poesia do compositor. Há ecos também da obra de Bob Dylan, outra referência fundamental na construção do cancioneiro do autor de A palo seco (1973), música que exemplificou o desespero que norteou o canto torto de Belchior.

Polida, Ana Cañas canta Belchior em disco sem realçar todo esse desespero e sem seguir por caminhos tortos. E é justamente essa surpreendente e afinada suavidade que faz com que o sétimo álbum da artista escape da seara do cover genérico para reforçar a assinatura da cantora ao mesmo tempo em que, sem excessos, reitera a força atemporal do discurso de Antonio Carlos Belchior.